“Milagre no Rio Hudson” é tão humilde e humano como o seu herói
Lembra-se da história daquele piloto que, em 2009, conseguiu amarar um avião no rio Hudson, em Nova Iorque, sem fazer qualquer vítima mortal e se tornou um herói?
Isto é o que todos achamos que aconteceu. Aliás, o próprio Clint Eastwood pensava o mesmo e por isso mesmo demorou a aceitar realizar “Milagre no Rio Hudson”. Depois percebeu que a história era bem mais complexa e menos dourada para o protagonista do que parecia.
“Tom Hanks não falha (será que alguma vez o fez?)”
O filme — que estreou quinta-feira, 8 de setembro, nos cinemas portugueses — não é a história de um acidente de avião que podia ter acabado em tragédia. É tudo o que aconteceu a seguir, como o complexo processo de inquéritos que pôs em causa a decisão do piloto, Chesley “Sully” Sullenberger (Tom Hanks), e do co-piloto, Jeff Skiles (Aaron Eckhart), levantando a hipótese de eles terem colocado em risco a vida de 155 pessoas.
O voo esteve no ar apenas seis minutos, depois de descolar de La Guardia, a 15 de janeiro, antes de ser atingido por um bando de pássaros que danificaram os dois motores. A partir daí, os pilotos sabiam que tinham de aterrar e a solução que encontraram foi o rio que rodeia a ilha de Manhattan — a companhia aérea e as várias equipas de especialistas garantiam que teria sido possível voltar ao aeroporto.
É através de flashbacks que Eastwood introduz o momento do acidente e das decisões que se seguiram, mas de várias perspectivas, dando ao espectador o triplo da informação que ele teria se a história fosse contada de forma linear. As simulações em computador, que explicam a leigos como nós a parte técnica, são simples e funcionam na perfeição.
Ele sabe que fez o que tinha de ser feito mas, tantas vezes as suas decisões são postas em causa, que o próprio começa a achar que pode ter cometido um erro.
Nos dias que se seguiram, para o público, Sully era um herói mas esse foi um título que ele nunca quis. Tom Hanks não falha (será que alguma vez o fez?), transforma-se fisicamente e oferece uma representação serena e competente de um homem extremamente humilde mas cheio de conflitos interiores. Ele sabe que fez o que tinha de ser feito mas, tantas vezes as suas decisões são postas em causa, que o próprio começa a achar que pode ter cometido um erro. Este é um homem que, tal como no resto da sua carreira, trouxe todos os passageiros de volta à terra em segurança. A única coisa que quer realmente é voltar a voar mas é arrastado para um processo moroso.
A porta do hotel tem fotógrafos, as pessoas abraçam-no na rua, participa em talk shows. Contudo, nos bastidores, a sua carreira pode estar a dois segundos de ser destruída. Nas conversas com a mulher — Laura Linney, que tem uma prestação notável, tendo em conta que tem de demonstrar as emoções durante todo o filme apenas interagindo com um telefone —, o desespero da incerteza do futuro é palpável e os silêncios são avassaladores, fazendo destes alguns dos momentos mais emotivos. Tom Hanks e Eckhart também não precisam de muitas palavras para demonstrar o respeito e a empatia entre os dois homens que estão a representar, e que confiam até ao fim nos instintos um do outro.
“Mesmo sabendo nós qual o desfecho, as emoções passam do ecrã cá para fora e um estado de nervos apodera-se de nós”
“Milagre no Rio Hudson” — que herdou um título em português bem mais impessoal do que o original, “Sully” — tem vários momentos de tensão, sobretudo nos minutos antes do avião amarar. O que é incrível é que, mesmo sabendo nós qual o desfecho, as emoções passam do ecrã cá para fora e um estado de nervos apodera-se de nós de tal forma, que nos agarramos e contorcemos nas cadeiras do cinema.
Para ajudar nesse aspeto, Clint Eastwood filmou inteiramente com a tecnologia IMAX. Foi o primeiro a fazê-lo, o que demostra que os seus 86 anos são apenas um pequeníssimo detalhe. Com este argumento de Todd Komarnicki (“Um Perfeito Estranho”) — baseado no livro escrito pelo próprio Sully com o jornalista Jeffrey Maslow —, o realizador fez aquilo que sabe fazer melhor: dá-nos um protagonista incrivelmente heróico mas na mesma proporção humilde e humano e deixa as interpretações fluírem e brilharem naturalmente, sem necessidade de diálogos pomposos. Tudo se liga na perfeição com acordes de piano, tão característicos dos filmes de Clint Eastwood.
Com este filme ele também não se acomodou, correu riscos — como mostrar várias vezes aviões a embaterem contra prédios em Nova Iorque, um tema que continua a ser delicado. Não é coincidência que “Milagre no Rio Hudson” chegue às salas a poucos dias do aniversário dos atentados: o filme quis dar a perspetiva das equipas de socorro, que resgataram os passageiros do rio e que os trataram nos hospitais. No total demoraram 24 minutos a atuar. Isto é uma espécie de agradecimento, subtil e inteligente, como todo o filme. Afinal, já diz alguém na história, “Nova Iorque não tinha notícias tão boas há muito tempo”.