Os tempos, eles estão a-mudar

Não vou fingir o contrário: o Nobel da Literatura deste ano foi uma enorme surpresa. E das boas. É a primeira vez que um poeta da música é reconhecido com este galardão e, que júbilo, já não era sem tempo.

Apesar do impacto social dos escritores de canções ser indiscutivelmente maior do que a esmagadora maioria dos receptores habituais deste prémio (e com uma longevidade de mais de meio século), os músicos sempre foram olhados de soslaio pela crítica literária. A verdade é que houve mais gente a ler e a ouvir os poemas de Bob Dylan, do que todos os outros prémios Nobel juntos. Há casos e casos, é certo, mas o caso de Dylan é inatacável.

“Houve mais gente a ler e a ouvir os poemas de Bob Dylan, do que todos os outros prémios Nobel juntos.”

A literatura é apenas uma das dimensões do espaço vectorial onde Bob Dylan opera. Dylan foi um homem que revolucionou a música popular, ora como diário confessional, ora como instrumento de intervenção. Nada foi igual depois da sua afirmação com “The Freewheelin’ Bob Dylan” em 1963. Ao contrário da natureza estritamente lúdica da música popular que aparecia nas tabelas de então, as canções de Dylan incorporavam um peso intelectual que atraía uma audiência mais sofisticada, gente que ouvia música sentada em sofás enquanto fumava substâncias nem-sempre-legais e dissertava sobre o sentido da vida e o peso da existência. Dylan não valia só pela música, valia também pela poesia e pela mensagem.

Bob Dylan mudou tudo e é a ele que devemos uma quantidade astronómica da nossa música preferida, mesmo a que não foi composta por ele. Nem os Beatles seriam quem nós conhecemos hoje se não fosse Dylan. Foi ele quem convenceu John Lennon a deixar os “I love you”s e a dar outra profundidade e realidade à sua música, isto depois de lhe apresentar o charro.

“Bob Dylan mudou tudo e é a ele que devemos uma quantidade astronómica da nossa música preferida”

Como melómano, alguém cuja vida foi conduzida pela música que ouvia, sinto que este Nobel é também um bocadinho meu. Em 2016, já escrevi uma série de textos de homenagem porque a morte dos respectivos artistas assim me obrigou (Bowie, Prince, Frey, já estava farto).

Felizmente, posso fazer o louvor a Dylan enquanto ele ainda cá está. Ainda bem que a Academia também teve essa coragem.

Dylan anunciava em 1964 que os tempos, eles estavam a-mudar. Em 2016, eles estão a-mudar mais ferozmente que nunca e é por isso que importa que se reconheçam os génios e se separe o trigo do joio no meio de todo este ruído da tecnologia e das redes sociais. Este Nobel é totalmente merecido e vem no momento certo. Muito bem, Academia.

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