Severino: o Pai Natal dos afetos

Conheça o homem por detrás da personagem e apaixone-se pela sua história.

Depois de uma vida passada atrás da secretária, Severino Moreira descobriu a sua vocação: ser Pai Natal. Fá-lo aqui no Colombo há 18 anos e, aos 69 anos, os seus olhos continuam a brilhar quando fala na mística da personagem e na doçura das crianças que o visitam. De lágrima fácil e sorriso constante, sentámo-nos à conversa com um Pai Natal à paisana. Modéstia à parte, o melhor Pai Natal do mundo: o nosso.

Deu muitas voltas antes de chegar a esta profissão.

Fui bancário durante 32 anos. Na altura, era um emprego razoavelmente pago, por isso as pessoas diziam que eu era louco, mas o que é certo é que não gostava muito do que fazia. Tenho imenso respeito pela profissão e foi o meu ganha-pão, nada disso está em causa, mas eu gosto muito de atividades criativas. Desde muito novo fiz teatro amador e ganhei gosto por tudo o que transporta sonho, fantasia, criação – seja lá em que vertente for. Tive a sorte de me reformar cedo e de não gostar de estar parado: gosto de caminhar, de escrever, de criar, de andar sempre ocupado. Quando não tenho personagens e filmagens, que eu faço alguma publicidade durante o ano, ando sempre com projetos e ideias para escrever. 

Desde sempre achei esta personagem tão rica, tão linda, com tanto para dar!

Com que idade começou a conectar-se com essa veia artística?

Comecei a escrever na minha adolescência. Lembro-me perfeitamente do primeiro poema que escrevi, em tom de homenagem póstuma a um rapaz que morreu, o Arlindo. Claro que era um poema muito prosaico, muito simples, mas era o meu poema, e acabou por aparecer num jornal juvenil. Fiquei todo orgulhoso e acabei por ganhar o gosto… Até hoje.

Depois veio o teatro amador: também surgiu muito cedo, tinha eu uns 14 anos. Aliás, o hábito de usar barba veio daí. Já usei umas vezes mais curta, como tinha na altura do Capitão Iglo, por exemplo, mas nunca mais fui capaz de a cortar, ela é parte da minha identidade. E isto veio dos tempos do teatro amador, porque eu tinha cara de miúdo e o meu encenador queria carregar-me um bocado o rosto. Criei o hábito… Mal sabia eu que um dia este Pai Natal me arrebanhava por completo!

E quando é que isso aconteceu?

A primeira vez que fiz de Pai Natal foi em família. Nós festejamos alegre e ruidosamente o Natal. Sou o mais velho de nove irmãos e, por isso, quando chegou aquela altura de ter sobrinhos pequenos e de alguém ter de fazer de Pai Natal, calhou-me a mim. Desde sempre achei esta personagem tão rica, tão linda, com tanto para dar! Mas isto foi em família. Profissionalmente comecei em anúncios; daí passei para o Colombo. Fizeram-me este convite e a minha primeira reação foi quase de negação, pensei “não me estou a ver um dia inteiro num Centro, é uma coisa demasiado cansativa”, mas depois vi aquilo como um desafio e decidi aceitar. E fiz bem, já lá vão 18 anos.

(…) faço parte das tradições de Natal de muitas pessoas e parte do imaginário de muitas crianças. Isso é lindo.

Tanto tempo?

Há 18 anos aqui, é verdade… Tem-me acontecido muito nos últimos anos uma coisa engraçada, que é receber visitas de jovens adultos, muitos já com os próprios filhos, que vinham cá tirar a fotografia comigo quando eram pequenos. É uma coisa que até me comove. Bem mas também para me comover não preciso de muito, sou de lágrima fácil! Estas coisas agarram-me completamente. As pessoas poderão eventualmente pensar – e estão no direito delas – que eu possa dizer coisas porque cai bem dizê-las, mas eu gosto mesmo muito disto, tenho uma grande afeição por esta atividade. Porque acabam por se gerar aqui afetos, há famílias que vêm ver-me todos os anos e que já me conhecem, eu faço parte das tradições de Natal de muitas pessoas e parte do imaginário de muitas crianças. Isso é lindo.

A propósito desse mundo imaginário das crianças: que importância tem que acreditem no Pai Natal?

Há uns anos, o Colombo editou-me um livro com histórias de Natal, cujas receitas reverteram a favor da Casa do Artista. Quem fez o prefácio foi o Eduardo Sá, o psicólogo, sabe? E ele, quanto a mim muito acertadamente, diz que a brincadeira é como o pão para as crianças – e ele é o técnico e tem por isso uma opinião balizada. Isto para dizer que fico muito triste quando vejo pais que não querem alimentar os sonhos das crianças… Já tive muitos casos desses. Acho que a fantasia e o sonho fazem parte do crescimento e, se não viverem isto durante a infância, quando vão viver? A menos que saiam assim como eu, que ando sempre a sonhar! Como dizia o Einstein, a imaginação é superior até à ciência, porque a ciência é limitada e a imaginação supera sempre tudo, não é?

A criança sai de casa na expectativa de ver o Pai Natal, um bonacheirão, um indivíduo simpático, e chega ali e encontra uma figura fria? O Pai Natal tem que ser mais que isso.

O que faz de um Pai Natal um bom Pai Natal?

A pessoa que faz de Pai Natal tem que gostar. Acho que é este o único segredo. Estar um dia inteiro em personagem com crianças a chegar… Tem que ser por gosto. Não concebo que uma criança vá ver o Pai Natal e que ele não lhe dê uma palavra. A criança chega ali, senta-se para a fotografia e vai-se embora? Isso não é fazer de Pai Natal. É certo que num Centro como este não posso estar todo o tempo do mundo com cada criança, são muitas. Agora não haver diálogo, não haver simpatia? A criança sai de casa na expectativa de ver o Pai Natal, um bonacheirão, um indivíduo simpático, e chega ali e encontra uma figura fria? O Pai Natal tem que ser mais que isso. Não quero gabar-me nem afirmar que consigo fazê-lo mas que tento sempre, tento – ai isso de certeza absoluta! Faço-o por gosto, vou evoluindo e tentando melhorar constantemente.

Quem está atento, encontra nas reações das crianças um encanto… Não há nada mais enriquecedor do que conseguir deixar uma criança que chega meia interrogativa com os olhos a brilhar de encantamento. Sentir que a criança se deslumbrou, isso sim, é reconfortante para o Pai Natal. Alguém dizia aqui há tempos que “o Pai Natal não é científico nem religioso, porventura será o último toque de imaginação que temos”. É com isto em mente que faço o meu Pai Natal.

Os pormenores também constroem a personagem? Os adereços, por exemplo?

Claro, contam histórias. A mala que levo, por exemplo: demorei uma série de tempo a encontrá-la, corri tudo, e depois decidi decorá-la com cartas de crianças, impressas em material autocolante. Acho que resultou muito bem. E tudo isto é feito por mim! A mala com as cartas que trago, a imitar cabedal, fui comprar o tecido de propósito à outra ponta da cidade. Aquela corneta ali é outro bom exemplo: entrei em todas as casas da Rua de São Bento e custou-me os olhos da cara, mas eu queria tanto aquilo! Os cajados com as bússolas, para encontrar o norte… A criança vê estas coisas e encontra encantamento, não é? É assim que vejo. E depois a caracterização, que me demora todos os dias uma hora – pareço uma noiva! Pinto a sobrancelha, ponho um tom rosado nas bochechas, torno o cabelo mais branco, uma série de passos que sigo.

Esta personagem dura um mês, mas requer preocupações durante o ano inteiro. Acha que esta atividade é valorizada?

Já estou como os políticos com aquela típica frase que eu tanto critico: “ainda bem que me faz essa pergunta”. Eu tive a sorte de ser muito acarinhado e estimado aqui no Colombo, sinto isso. Até um boneco em 3D com o Pai Natal à minha semelhança me ofereceram – é uma peça incrível. Mas não é regra… Até acho que há aquela ideia de que quem faz de Pai Natal é aquele indivíduo necessitado, que “como é velhinho e tal…” E eu não encaro isto assim. Esta atividade não é premiada por ninguém – premiada no sentido de lhe atribuírem significado, de lhe reconhecerem utilidade. Dura um mês e acabou, como se fosse só aquilo, quando eu, a partir de março, estou a preparar-me para o Pai Natal. São meses! Todos os anos gosto de acrescentar um adereço qualquer… Enfim, requer preparação e dedicação. 

E, durante o mês de dezembro, são dias inteiros sempre em personagem.

Todas as profissões têm as suas dificuldades. Mas sim, é um facto que estar sempre em personagem é desafiante. Se me apetecer coçar o nariz, se me apetecer bocejar, se me apetecer espreguiçar e por aí fora, não posso: durante aquele número de horas, que não são poucas, toda a gente tem os olhos em mim. E eu não sou o Severino, sou o Pai Natal.

A alguns adultos fazia muita falta beber um bocadinho da mensagem do Pai Natal.

E no seu Natal, passado em família, também faz de Pai Natal?

Claro! Os meus netos saíram algo prejudicados porque apercebem-se de que é o avô Nino, é impossível disfarçar… Mas ainda sou Pai Natal no dia 24! Fiz isto uma vez, a pedido de uma vizinha, e rapidamente choveram outros pedidos: antes do meu Natal, passo por uma série de casas. Os adultos descem à rua para me entregarem os presentes, depois o Pai Natal sobe e oferece aquilo em mãos. Enquanto vou pela rua com a minha lanterna, a fingir que não sei o caminho, os miúdos vêm todos à janela chamar por mim: “é aqui, é aqui!”, entusiasmadíssimos. É muito giro. Pronto, é assim a minha Consoada: faço de Pai Natal pelo bairro, depois faço em minha casa; só depois descontraio verdadeiramente e desfruto da minha noite enquanto Severino.

Quem é que precisa mais de acreditar na magia do Pai Natal: as crianças ou os adultos?

A alguns adultos fazia muita falta beber um bocadinho da mensagem do Pai Natal. Porque no fundo qual é a sua mensagem? É simples: generosidade, bondade, partilha. Isso, na nossa sociedade, vai fazendo cada vez mais falta. Que dezembro sirva para fazer as pessoas pensar. Não pode ser só um tempo de dar e receber materialmente… O Natal é mais que isso. É muito mais.

Fotografias: Mariana Alvarez Cortes

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