Vista Alegre: vidas que se cruzam com a história

No ano em que a Vista Alegre celebra 193 anos, fomos à procura das histórias que ajudaram a construir o seu legado. Como a de Duarte Fradinho, filho e neto de trabalhadores da fábrica, nascido e criado no bairro da unidade fabril, e há 38 anos dedicado a manter viva as aspirações de José Ferreira Pinto Basto, o homem por trás do sonho.

Na Rua Engenheiro João Theodoro, n.º 8, encontramos a prova viva que a utopia de José Ferreira Pinto Basto, fundador da Vista Alegre, não só se concretizou como permanece viva há quase 200 anos. Nessa casa, vive há 56 anos Duarte José Fradinho, filho e neto de operários da fábrica, e casado há 29 anos com uma funcionária, também ela filha e neta de operários locais. A sua família é uma das que perdura no bairro operário pensado em 1824 pelo filantropo que, nas margens do rio Boco (Ílhavo), decidiu pôr em prática os princípios do socialismo utópico: uma unidade de produção rodeada de um bairro social com escola, cuidados médicos e espaços recreativos.

Para tal, ao mesmo tempo que construía a fábrica de cerâmica, José Pinto Basto e o irmão Joaquim começaram a projetar e a erigir as primeiras casas. Nelas terão vivido alguns vidreiros e ceramistas da geração original, que nessa altura já contava com cerca de 200 pessoas.

Na viragem do século, quando o engenheiro João Theodoro – que dá nome à rua de Duarte – se torna administrador da fábrica (1922-1947), o espaço conhece as grandes estruturas que se mantém até hoje, como a creche, o refeitório, a barbearia, a filarmónica, o grupo coral ou o de teatro. Espaços de convívio que marcaram gerações e gerações.

“Quando eu tinha 18 anos, a vida aqui no bairro social era fantástica! Nós, jovens, seríamos uns 30 ou 40, nunca tínhamos horas mortas”, relembra Duarte. E continua: “Criávamos as nossas brincadeiras – aos cowboys ou aos jogos Olímpicos (em que percorríamos aqui as ruas a correr) – e quando chegavam as férias grandes – no mês de julho e de agosto – todos os caminhos iam dar à nossa piscina natural, no rio Boco!”.

E mesmo quando o trabalho obrigava a acordar às 7h para entrar às 8h e fazer outras tantas horas de trabalho, havia tempo de sobra para o convívio: “Tínhamos sempre atividades porque existia (e existe) o teatro – um espaço fantástico – ao qual quase todos estávamos ligados ou o grupo desportivo da fábrica, o nosso querido Sporting Clube da Vista Alegre, o grande ponto de encontro do bairro”.

 

Entretanto, desde o início do século XX, a comunidade já tinha também uma escola primária (uma das primeiras do concelho de Ílhavo), uma corporação de bombeiros (das mais antigas corporações privadas em Portugal) e uma cooperativa, onde era possível adquirir géneros de primeira necessidade a preços baixos, nos quais se incluíam também os produtos da quinta, que os Pinto Basto mantinham na propriedade da Vista Alegre.

“Muitas vezes, quando chegávamos com a leiteira a casa, ela já vinha a meio porque vínhamos a beber o leite pelo caminho… Tínhamos à volta de 50 ou 60 vacas, incluindo a campeã nacional de produção de leite, a Estrela”, relembra Duarte. E acrescenta: “Na cooperativa, que era um mini mercado, podíamos comprar vários produtos como arroz ou açúcar também com regalias. Havia bónus e com eles os funcionários podiam fazer compras sem gastar o ordenado!”

Ordenado esse que pagava renda e luz, já que a água era e continua a ser gratuita. Quanto ao valor da renda também se mantém o mesmo: “Um dia de salário descontado diretamente do vencimento”, confirma Duarte, que desde os 18 anos trabalha na fábrica. Começou por produzir pratos, depois ingressou na pintura à pistola e, há sete anos, está ao serviço do Museu Histórico da Fábrica da Vista Alegre.

Os meus pais também trabalharam aqui, tal como o meu avô e o meu bisavô. O meu avô foi mestre geral e a minha mãe trabalhou durante 47 anos na escultura, a fazer flores na palma da mão. Já o meu pai foi contramestre forneiro e trabalhou aqui 53 anos, tal como os meus sogros”. Duarte, com 38 anos de casa, ainda tem um caminho longo na fábrica, caminho que faz com um sorriso sempre que acolhe um novo grupo de visitantes no Museu da Vista Alegre e diz: “Estamos no coração do bairro social da Fábrica Vista Alegre, mais precisamente na Rua Engenheiro João Theodoro, n.º 8. Foi nesta casa que nasci há 56 anos e onde sempre vivi”.

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